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Brasil em Foco

Série Brasil em Foco 10/2023

Centralismo federal x crítica regional / O Brasil e a Amazônia sob Cerco do Crime Organizado / Repensando uma Parceria Estratégica: as eleições da Argentina e o Brasil

Leia a nova edição da série Brasil em Foco, que está disponível para download gratuito. Os três novos textos são dedicados aos seguintes tópicos: a questão tributária brasileira no contexto da relação entre o âmbito federal e o regional, a questão do crime organizado na região amazônica e o resultado da eleição presidencial na Argentina e impactos para a relação com o Brasil. A série Brasil em Foco tem por objetivo publicar mensalmente artigos com análises sobre os principais temas em pauta no cenário político, a fim de contribuir no debate democrático.

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Centralismo federal x crítica regional

Humberto Dantas[1]

O Brasil proclamou-se República em 1889 sob o equivocado nome de Estados Unidos. Nunca fomos colônias independentes que se juntaram, mas sim um Império que se fragmentou para não se separar em nações. Ao menos é isso o que sugere a teoria sobre o federalismo. Existem duas justificativas: une-se para fortalecer, ou divide-se para não separar. Nesse segundo caso, pode haver falsa percepção de autonomia, ou seja, não é impossível que o resultado seja um regime centralizado.

No Brasil, isso ocorreu: se a princesa Isabel reclamava que o Império arrecadava demais e o dinheiro não chegava “na ponta”, a partir de 1889 nosso pacto federativo caracterizou-se por dois desafios. O primeiro: um dos entes carrega demais em arrecadação, e tal ator é a União, o que dificulta política e administrativamente estados e municípios. Concomitantemente, o país emprega muita responsabilidade às esferas subnacionais em políticas públicas. Resultado: a União arrecada demais e transfere. Parte expressiva sob a forma de fundos automáticos, mas há parcela de recursos políticos. Assim, não é incomum que Brasília seja inundada por prefeitos e governadores em busca de dinheiro, assim como parlamentares controlam verbas se autoproclamando embaixadores regionais.

Assim, faz anos ouvimos falar em reforma do pacto federativo, e há décadas criticamos o sistema tributário cujas alterações tramitam como emenda constitucional no Congresso. Se o objetivo é descomplicar o sistema, tornando-o mais justo para setores produtivos e cidadãos menos favorecidos, é importante compreender algo adicional sobre a reforma: manteremos o pacto federativo em lógica ultracentralizada? Ou seja: a forma de arrecadar e distribuir recursos entre as esferas de poder, e as responsabilidades sobre as políticas públicas mudarão?

Na campanha presidencial de 2014, Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB) falaram em reforma descentralizadora do pacto. Em 2018, Bolsonaro falou em “mais Brasil e menos Brasília”, mas o que se viu atendeu pelo nome de “orçamento secreto”, notabilizado por emendas inominadas que alimentaram o Centrão em torno da governabilidade. Não adiantou ministros à época chamarem tal prática de municipalização do orçamento, o assunto é mais delicado. Por fim, tal agenda não faz parte de ações do atual governo ou do PT. O partido gosta da lógica mais central, e esta característica dificilmente será alterada no Congresso Nacional formado por parlamentares que amam a centralidade política de parte do orçamento federal.

Em meio a tal realidade, governadores do Sul e Sudeste se uniram em frente formalizada recentemente como COSUD – Consórcio de Integração Sul e Sudeste. As primeiras justificativas foram atabalhoadas, partindo de declarações vistas como separatistas e preconceituosas do governador de Minas Gerais. Passado o furacão, a associação se deu em meio a discursos amenizados. Governadores afirmaram que a aproximação sequer tem conotação política, o que obviamente é um discurso político. Mas o fato é que para fugir de polêmicas, sinalizaram que a união tratará de aprimoramentos da gestão pública.

Difícil crer, lembrando que há reclamações de sub-representação parlamentar de tais estados no Congresso Nacional frente às bancadas de Norte e Nordeste, e que dos sete governadores do eixo Sul-Sudeste, cinco são de partidos de oposição mais evidente a Lula – PSDB (RS), PL (SC e RJ), Republicanos (SP) e Novo (MG). Assim, o que esperar dessa aproximação? Existem três opções: a) resistências críticas, esperamos que democráticas, ao governo federal olhando para 2026 e para agendas regionais; b) cooperações técnicas em gestão, planejamentos e projetos estratégicos conjuntos e; c) simbolismos políticos arrefecidos, justamente, pela dependência ao centralismo federativo nacional em termos de políticas públicas e orçamento. Eu apostaria numa mescla de todas as alternativas, com forte destaque para C.

 

O Brasil e a Amazônia sob Cerco do Crime Organizado

Renato Sérgio de Lima[2]

Mais de 60% da Amazônia Internacional fica em território soberano do Brasil, país que tem na questão ambiental um dos seus eixos estratégicos de projeção no cenário geopolítico mundial. A gestão do presidente Lula da Silva recolocou o tema na agenda interna do país e, de agosto de 2022 a julho de 2023, já pode comemorar a redução de 22,3% da área desmatada na Amazônia Legal em comparação com o período anterior.

Porém, no contexto da 28ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou o estudo “Cartografias da Violência na Amazônia”, que traz dados alarmantes sobre a crescente intersecção entre crimes ambientais e narcotráfico na região; sobre como o crime organizado é a principal ameaça geopolítica e estratégica para o Brasil.

Só na parte do Brasil da Amazônia, existem 22 grupos criminosos armados, alguns em estreita cooperação com ex-guerrilheiros da FARC, na Colômbia, que agora vivem do narcotráfico e do garimpo ilegal de ouro e outros minerais. Dois desses 22 grupos criminosos são nacionais e têm disputado violentamente o controle de rotas e territórios na Amazônia.

São eles o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o Comando Vermelho, que nasceram nos presídios de São Paulo e do Rio de Janeiro, que não estão localizados na Amazônia brasileira. Chama atenção que, além de ocupar posições estratégicas para as rotas do narcotráfico que passam pelo Brasil, o PCC já está presente, só na região amazônica, na Bolívia, na Guiana, na Guiana Francesa, no Suriname e na Venezuela.

No estudo do FBSP, os pesquisadores estimaram que pelo menos 23% de todas as cidades que estão na Amazônia brasileira tenham a presença de grupos criminosos. O mais grave é que, pelo estudo, as mesmas cidades com presença de organizações criminosas concentram 57,9% dos habitantes da região.

E o que fortalece esses grupos é, de certo modo, o mesmo fenômeno que empodera as milícias fluminenses, ou seja, o domínio territorial armado e violento de espaços onde o Estado não consegue prover direitos, infraestrutura e cidadania.

Em meio a cenário e às disputas entre grupos criminosos, as forças de segurança pública tentam atuar da forma mais efetiva possível, mas têm recursos limitados para a magnitude do problema e do território sob sua jurisdição. E, em algumas situações, precisam lidar com táticas que assemelham àquelas associadas ao terrorismo, como incêndios de ônibus e promoção do terror junto à população.

Os números da violência mostram a gravidade do problema: em 2022, a taxa média de homicídios na Amazônia foi 45% superior à média brasileira; bem como a taxa de assassinatos de indígenas na Amazônia é 26% maior do que nos estados que não fazem parte da região. Entre 2018 e 2022, os registros policiais de grilagem de terras tiveram crescimento de 275,7%.

Por outro lado, as forças de segurança e o sistema de justiça criminal ainda atuam de forma pouco coordenada e muito dependentes das respostas militarizadas das Forças Armadas e das Polícias Militares estaduais. Os recursos para investigação e redução da impunidade são escassos.

A área da Amazônia é 20 vezes maior do que, por exemplo, o estado de São Paulo, o mais rico do país. Todavia, São Paulo tem mais do que o dobro de embarcações disponíveis; e tem 30% mais helicópteros do que a soma dos equipamentos dos estados que compõem a Amazônia brasileira.

Como resultado, o Brasil e a Amazônia como um todo estão sob cerco do crime organizado, o que torna muito mais complexa a construção de modelos de desenvolvimento econômico sustentáveis tanto social quanto ambientalmente. Não dá para planejar e desenhar Planos de Desenvolvimento Sustentável e de Segurança sem que este problema seja enfrentado.

Esforços estão sendo feitos, mas é preciso fortalecer os mecanismos de cooperação regional, pois o crime não respeita fronteiras e ameaça a soberania dos países da região.

 

Repensando uma Parceria Estratégica: as eleições da Argentina e o Brasil

Maurício Santoro[3]

A Argentina é a terceira maior parceira comercial do Brasil, atrás apenas da China e dos Estados Unidos, principal destino das exportações industriais brasileiras e da origem de turistas estrangeiros que visitam o Brasil. Qualquer crise econômica ou política no vizinho platino tem consequências bastante negativas para o país. Nesse contexto, como interpretar as eleições presidenciais de 2023 e a vitória de Javier Milei na disputa pela Casa Rosada?

Milei é um recém-chegado à política argentina – entrou na vida pública há apenas dois anos, quando foi eleito deputado pelo partido que fundou, A Liberdade Avança.  Construiu sua meteórica carreira com base em um discurso antissistema de rechaço aos políticos tradicionais e com uma visão econômica libertária, de rejeição ao Estado, incluindo a defesa da dolarização. Na política externa, o candidato afirmou que não manteria relações com Brasil e China, que Argentina deixaria o Mercosul e não ingressaria nos Brics.

Essas posições diplomáticas são muito diferentes das adotadas pelos presidentes que a Argentina teve desde a redemocratização, em 1983. Fossem peronistas ou liberais, seus governos deram prioridade às relações com o Brasil, que se tornou o maior parceiro comercial dos argentinos, e aos processos de integração da América Latina. No século XXI, a China também se consolidou como um grande mercado paras exportações da Argentina.

Até que ponto o presidente Milei seguirá o roteiro ideológico do candidato? A elite política e empresarial da Argentina está cética quanto à sua capacidade em implementar reformas radicais. Ao longo do segundo turno da campanha, Milei se aliou aos políticos tradicionais que tanto criticou, como o ex-presidente Mauricio Macri. O Liberdade Avança tem apenas cerca de 15% do Congresso, a terceira força parlamentar, atrás dos peronistas e da centro-direita. O novo governo precisará montar coalizões para aprovar leis e emendas constitucionais se quiser, por exemplo, privatizar estatais ou extinguir órgãos públicos.

O novo presidente tem pela frente tarefas difíceis e urgentes: controlar a inflação, já muito alta, antes que ela degenere em hiperinflação. É preciso realizar uma maxidesvalorização do peso e reformar o caótico regime cambial, com dezenas de cotações diferentes para o dólar. As baixas reservas internacionais também são um problema, pois estão abaixo do que é preciso para que a Argentina pague o serviço da dívida externa no próximo ano. Milei terá que fazer um duro ajuste fiscal para controlar as contas públicas, enfrentando a oposição peronista ampla e bem articulada com sindicatos e movimentos sociais.

O interesse nacional do Brasil é o que o novo presidente da Argentina seja bem-sucedido em enfrentar à crise econômica, sem que recorra a medidas extremas como deixar o Mercosul. O pior cenário seria a repetição na Bacia do Prata de um colapso como o da Venezuela. Isso inviabilizaria qualquer projeto de integração regional na América Latina, tema prioritário para a diplomacia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

 O desafio para Brasília e Buenos Aires é desdramatizar a relação bilateral e tirá-la das controvérsias partidárias e da polarização ideológica dos últimos anos, quando muitas vezes a diplomacia se viu em segundo plano diante de guerras culturais globais entre direita e esquerda. Para um presidente veterano como Lula, é necessário compreender também que seu 3º mandato se dá em contexto muito diferente de seus governos anteriores, com uma economia global mais turbulenta e uma América Latina de muitas divisões, poucos consensos e onde líderes antissistema como Milei estão em alta.

 

 

[1] Cientista político, doutor pela USP e parceiro da KAS.

 

[2] Diretor Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Professor da FGV EAESP

[3] Doutor em Ciência Política pelo Iuperj, professor de Relações Internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha.

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