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Brasil em Foco

Série Brasil em Foco 04/2024

11x0 para a lucidez. O STF e o Poder Moderador das Forças Armadas / Os Neurodireitos e a Atualização do Código Civil Brasileiro / Artigo sobre a notícia “Câmara aprova retrocessos na pauta ambiental e pode fragilizar mecanismos de prevenção”

A nova edição da série Brasil em Foco traz três artigos inéditos sobre o julgamento do STF sobre o Poder Moderador das Forças Armadas, a atualização do Código Civil Brasileiro, e também um artigo sobre recentes decisões da Câmara, no contexto da pauta ambiental. A série Brasil em Foco tem por objetivo publicar mensalmente artigos com análises sobre os principais temas em pauta no cenário político, a fim de contribuir no debate democrático.

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11x0 para a lucidez. O STF e o Poder Moderador das Forças Armadas

Humberto Dantas[1]

A Constituição Federal de 1988 traz em seu artigo 142 parte do capítulo que organiza as Forças Armadas. Trata-se de tema caro à história política, uma vez que desde 1822 a farda protagonizou, ou se envolveu diretamente, em alterações ou rupturas institucionais do país. Como exemplos: a Proclamação da República, movimentos nascidos nos quartéis, a presença na instituição e deposição de Getúlio Vargas no poder, a tentativa de garantir estabilidade no período 46-64, o próprio Golpe de 1964, a tomada do poder até 1985 e instantes posteriores, como a garantia de posse de Sarney. A partir da promulgação da Constituição de 1988, e dos governos de FHC, algo sugeriu compreensão mais pacífica sobre o papel dos militares na realidade.

Quis o destino, no entanto, que o universo paralelo vivido por parcelas de pessoas que raciocinam à margem da lei, desprovidas de lucidez democrática, trouxesse parte da força da farda de volta à política. A partir de alvoroço eleitoreiro, voltou-se a crer que patentes colocariam ordem num país que desacredita sua política. Nesse caso, se por um lado, democraticamente alguns personagens foram eleitos e ampliaram a força desse segmento nos organismos de representação, por outro os discursos se inflamaram e contaminaram partes de um povo pouco afeito à democracia. Isso resultou numa escancarada tentativa de Golpe de Estado entre 2022 e início de 2023, conforme já tratamos aqui.

Em meio a todas essas considerações, ganhou força no Brasil a tese de que as Forças Armadas poderiam interferir nos poderes constituídos em nome da ordem, sendo ressuscitada a tese do Poder Moderador, que ficaria a cargo dos quartéis. Essa alegoria legal de moderação é uma reinvenção de algo absolutista que vivemos a exatos 200 anos atrás, em nossa primeira Constituição, outorgada autoritariamente pelo Imperador que dissolveu a Assembleia Constituinte para tanto.

Em tal documento, os artigos 98 a 101 explicitam o Poder Moderador nos seguintes termos: delegado ao Imperador, responsável pelo equilíbrio e harmonia dos poderes políticos, inviolável, sagrado, inimputável de qualquer responsabilidade e capaz de agir de forma bastante ampla. Em resumo: a formalização do absolutismo.

Agora pense: os anos 80, década símbolo da Democracia em nossa história, cujo objetivo maior era expurgar uma ditadura militar, formularia um texto que entregaria a lógica de moderação política ao algoz da própria democracia? Impossível. Só por conta do trecho que indica que as Forças Armadas operam pela “garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”? Qual a criatividade que associa a garantia dos poderes à destituição dos poderes como Moderador?

Mas se em nossa realidade, para alguns, a Terra é plana e as campanhas de imunização implantam chips que monitoram corpos, o que esperar de interpretações alucinantes? E para dirimir dúvidas a este respeito, atendendo provocação do PDT, o STF julgou o que entende ser a interpretação da tese moderadora das Forças Armadas do artigo 142. Resultado: 11 ministros contrários e nenhum favorável ao devaneio. A partir de tal percepção e diante do Golpe de Estado que se tentou no Brasil, com a participação direta de alguns fardados, fiquemos com passagens do próprio artigo 142 da Constituição:

VI - o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra;

VII - o oficial condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior;

Que os golpistas, sobretudo dos quartéis, paguem, e que a ignorância se perca.

 

Os Neurodireitos e a Atualização do Código Civil Brasileiro

Chiara Spadaccini de Teffé[2]

Eleonora Mesquita Ceia[3]

No dia 17 de abril de 2024, foi divulgado o relatório final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (Lei nº 10.406/2002). O trabalho revelou-se necessário diante da importância da legislação civil se adequar às mudanças sociais das últimas décadas, sobretudo em temas envolvendo novos arranjos familiares e revolução tecnológica.

Atualmente, vários aspectos centrais de nossa vida são objetos de datificação, havendo o desenvolvimento permanente de predições e perfilamentos a partir de nossos dados pessoais[4]. Nesse contexto, ganham notoriedade os estudos relativos aos neurodireitos e à regulação das neurotecnologias. Percebe-se um acelerado desenvolvimento de dispositivos nas áreas da saúde e da pesquisa voltados a prever, diagnosticar e tratar doenças físicas e mentais complexas, por meio de informações obtidas diretamente do cérebro humano. Muito em breve, tais tecnologias serão aplicadas em nossos locais de trabalho, nos esportes, na educação e em recursos direcionados ao entretenimento e ao bem-estar para fornecer, por exemplo, serviços mais precisos e personalizados. Por isso, mostra-se  essencial  tutelar de forma ampla a integridade e a liberdade da pessoa humana, havendo tanto a discussão de limites éticos e morais no desenvolvimento de tais tecnologias quanto o estabelecimento de garantias aos indivíduos.

Nessa perspectiva, o projeto de atualização do Código Civil apresenta interessante disposição ao  incluir, no Livro sobre o  “Direito Civil Digital”, norma acerca da temática: “Os neurodireitos são parte indissociável da personalidade e recebem a mesma proteção desta, não podendo ser transmitidos, renunciados ou limitados. São considerados neurodireitos as proteções que visam preservar a privacidade mental, a identidade pessoal, o livre arbítrio, o acesso justo à ampliação ou melhoria cerebral, a integridade mental e a proteção contra vieses, das pessoas naturais, a partir da utilização de neurotecnologias”[5]. Os neurodireitos se relacionam à proteção e preservação do cérebro e da mente humana, incluindo o direito a tomar decisões sem interferências e o direito à proteção contra discriminação e vieses algorítmicos[6].

A necessidade de atualização legislativa a respeito das neurotecnologias e seus impactos sobre os direitos individuais e coletivos não recaiu apenas nas discussões relativas ao Código Civil, mas também surgiu em nível constitucional. Em junho de 2023, foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 29, que propõe a inclusão do inciso LXXX ao artigo 5º da Constituição Federal com a seguinte redação: “o desenvolvimento científico e tecnológico assegurará a integridade mental e a transparência algorítmica, nos termos da lei”[7].

Os proponentes justificam a PEC com base no dever do Estado brasileiro de garantir os benefícios da evolução tecnológica, mas não às custas da autonomia e integridade humanas. A referida PEC, mediante o reconhecimento dos neurodireitos como cláusulas pétreas, os consagram como limites éticos e normativos a serem observados pelas neurotecnologias, como também reafirma o texto constitucional de 1988 como uma “Constituição viva”, dinâmica e responsiva às demandas da sociedade.

Diante disso, a inclusão dos neurodireitos no Anteprojeto de reforma do Código Civil é muito bem-vinda e visa a garantir a plena realização dos valores constitucionais nas diversas relações jurídico-privadas, cada vez mais marcadas pela interação intensa entre as novas tecnologias e a pessoa humana.[8]

 

Artigo sobre a notícia “Câmara aprova retrocessos na pauta ambiental e pode fragilizar mecanismos de prevenção”

Profa. Dra. Priscila Elise Alves Vasconcelos[9]

No último dia 23 de abril, publicou-se a seguinte notícia: “Câmara aprova retrocessos na pauta ambiental e pode fragilizar mecanismos de prevenção”. O aquecimento global e medidas de descarbonização ou neutralização na emissão de gases de efeito estufa são os temas mais debatidos na atualidade, seja na esfera governamental, seja na privada ou acadêmica. Os efeitos das mudanças climáticas estão sendo sentidas em todos os lugares do planeta, tendo por consequência desastres ambientais, secas, desequilíbrio ambiental que reflete na segurança alimentar e qualidade de vida da população.

Em pleno ano de 2024 onde o Brasil vive em determinadas regiões uma forte estiagem e em outras chuvas torrenciais, o legislativo brasileiro parece estar em outro lugar. O país que irá receber a COP 30 em 2025, que deveria estar no ápice exemplar de medidas protetivas ao meio ambiente, parece ir em sentido contrário. Ao invés de medidas de fomento a proteção e minimização de impactos ambientais – que estão se refletindo nas mais diversas áreas e setores -, no dia 23 de abril de 2024, a Câmara dos Deputados possui cerca de seis projetos que vão ao encontro da preservação ambiental. Em outras palavras, ferem todos os preceitos de sustentabilidade  atuais.

Os projetos que estão tramitando dizem respeito à liberação do desmatamento de vegetação nativa não florestal em todos os biomas brasileiros; legalização do garimpo em áreas de reservas extrativistas; relativizar medidas de prevenção a incêndios em áreas rurais;  flexibilização  de  áreas  de  preservação  permanente  –  as  APP´s  -;  restringe  a cobrança da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental às atividades submetidas à competência de licenciamento da União incluindo aqui o IBAMA; e, tornar a silvicultura uma prática sem impacto ambiental.

Um dos projetos diz respeito à permissão a desmatar áreas de vegetação nativas não florestais em todos os biomas brasileiros. Isso deve ser melhor analisado, verificando números. Dentre os biomas brasileiros – amazônico, caatinga, cerrado, mata atlântica, pampa e pantanal – o cerrado foi o que mais sofreu com o desmatamento descontrolado, perdendo sua vegetação nativa em 11 dos seus 13 estados, de acordo com dados do IPAM Amazônia (2021).

De acordo com os dados do IPAM (2024), o cerrado em 2022 teve aproximadamente 512 mil hectares de área desmatada, na área correspondente aos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – o MATOPIBA. O segundo maior bioma brasileiro possui apenas 1,7% de área protegida por parques e áreas de conservação. “Permitir o desmatamento” pode resultar na extinção de importantes biomas e com consequente perda significativa da biodiversidade.

Outro ponto a ser levantado diz respeito à legalização do garimpo em áreas de reservas extrativistas. Desde janeiro de 2023 no estado de Roraima, há um movimento intenso de combate ao denominado “garimpo ilegal” envolvendo inclusive as Forças Armadas. O impacto ambiental gerado pela atividade com uso de substâncias tóxicas como o mercúrio, causaram a contaminação de rios atingindo a subsistência de populações ribeirinhas que vivem da pesca artesanal.

 

Quanto à restrição da taxa de controle e fiscalização ambiental, trata-se de uma forma de mitigar a atuação do IBAMA. Esse tributo tem por objetivo controlar e fiscalizar atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais. É uma forma de efetivar os princípios da prevenção e do poluidor pagador. Além disso, é uma forma de monitoramento das atividades, educação ambiental e vigilância sobre atividades consideradas lesivas ao meio ambiente.

Infelizmente, medidas como essas fazem como que o Brasil vá em direção oposta a todos os acordos e políticas internacionais sobre clima e meio ambiente. A grande questão é que além de signatário desses tratados e acordos internacionais, o Brasil tem papel fundamental na garantia da biodiversidade e da preservação ambiental.

 

 

[1] Cientista político, doutor pela USP e parceiro da KAS.

[2] Doutora e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é coordenadora de pesquisa e publicações da pós-graduação em Direito Digital do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), em parceria com a UERJ, e professora de Direito Civil e Direito Digital na faculdade de Direito do IBMEC. Leciona em cursos específicos de pós-graduação e extensão do CEPED-UERJ, da PUC-Rio, da EMERJ e do ITS Rio. Membro da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OABRJ. Membro da Comissão de Direito Civil do Conselho Seccional do Rio de Janeiro da OAB (2022/2024). Membro do Fórum Permanente de Liberdade de Expressão, Liberdades Fundamentais e Democracia da EMERJ. Membro do Fórum permanente de inovações tecnológicas no Direito da EMERJ. Associada ao Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC). Membro Titular do Conselho Municipal de Proteção de Dados Pessoais e Privacidade do Rio de Janeiro. Autora do livro "Dados pessoais sensíveis: qualificação, tratamento e boas práticas". Advogada.

[3] Doutora em Direito pela Faculdade de Economia e Ciências Jurídicas da Universidade de Saarland. É Professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professora do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Ibmec-RJ.

[4] TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Dados pessoais sensíveis: qualificação, tratamento e boas práticas. São Paulo: Foco, 2022.

[5] BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório final dos trabalhos da Comissão. Brasília, DF: 19 abr. 2024. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/txtmat?codmat=159721. Acesso em: 22 abr. 2024.

[6] YUSTE, R.; GOERING, S.; ARCAS, B. et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and AI. Nature, 551, 159–163, 2017. FARAHANY, Nita. The Battle for Your Brain: Defending the Right to Think Freely in the Age of Neurotechnology.  St. Martin's Press, 2023.

[7] BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 29, de 2023. Brasília, DF: 13 jul. 2023. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158095. Acesso em: 22 abr. 2024.

[8] Na I Jornada de Direitos Humanos e Fundamentais da Justiça Federal da 2º Região, ocorrida em abril de 2024, foram aprovados dois enunciados relativos ao tema: “Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, moral e psíquica, estando nela incluídos os direitos à privacidade mental e à identidade pessoal, o direito a tomar decisões livremente e a proteção contra discriminações e vieses algorítmicos.” “A tutela da pessoa humana no ambiente digital abrange os neurodireitos, como corolário da proteção dos Direitos Humanos através dos seus quatro eixos fundamentais: identidade pessoal, integridade mental, privacidade mental e liberdade cognitiva”.

 

[9] Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima - ICJ UFRR.

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